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Foto do escritorRicardo Rochman

123milhas: a versão brasileira da Enron ou AOL

Atualizado: 9 de nov. de 2023


Assim como milhares ou milhões de brasileiros, fiquei surpreso pela notícia do pedido de recuperação judicial da 123milhas em 29/08/2023, e ainda mais estupefato pelo valor da causa de mais de R$ 2,3 bilhões.


Há algum tempo já estava impressionado pelo enorme volume de publicidade da 123milhas na internet, TV a cabo e outros canais, que fazia até parecer que a empresa era a única anunciante em alguns canais. Uma notícia da UOL (https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2023/08/21/em-meio-a-crise-com-passagens-123milhas-e-o-2-maior-anunciante-do-brasil.htm) cita um ranking do Meio & Mensagem que coloca a 123milhas como maior anunciante de 2021 e 2a maior de 2022, com gastos de R$ 2,37 bilhões em 2021 e R$ 1,18 bilhão em 2022.


Depois de algum esforço consegui encontrar na internet as demonstrações financeiras da 123milhas, e vi que a empresa teve lucro líquido de R$ 5,4 milhões em 2020, R$ 16,5 milhões em 2021, e prejuízo de R$ 13,6 milhões em 2022. Até aí nada de anormal, pois estamos saindo do período de pandemia e o setor de viagens e turismo está sofrendo com a transição. Mas o que chamou atenção foi como uma empresa que teve receita líquida de R$ 278,2 milhões em 2022 e R$ 171,2 milhões em 2021, conseguiu ter lucro em 2021 e um relativo pequeno prejuízo em 2022 se incorreu em gastos bilionários em publicidade nesses dois anos?


A resposta é que a 123milhas decidiu capitalizar os gastos de marketing como ativos ao invés de lançá-los como despesas, fazendo com que os ativos ficassem inflados, e os prejuízos fossem reduzidos, virando até lucro em alguns períodos.

Esse tipo de procedimento, utilizado por meio de uma interpretação do CPC 04 (R1), foi adotado de forma similar pela Enron e AOL em meados dos anos 90 e início dos anos 2000. Essas duas empresas capitalizaram vendas futuras como ativos, e em alguns casos até como receitas, gerando resultados fictícios, que posteriormente vieram à tona e causaram perdas bilionárias. Esses escândalos levaram à criação da lei Sarbanes-Oxley (SOX) em 2002, e a uma grande conscientização sobre a importância da governança corporativa, o G do ESG.


A AOL produzia e distribuía CDs (inclusive no Brasil) em jornais e caixas de cereais, esses CDs distribuídos eram considerados como ativos no lugar de despesas, e geravam receitas sob a justificativa que uma fração dos CDs viraria clientes por certo período de tempo. Aparentemente a 123milhas fez algo semelhante, mas ao invés de usar CDs fez com a contabilização dos gastos de marketing. Assim quanto maior fossem os gastos com publicidade, maior seria o ativo da empresa sem afetar a demonstração de resultados. Mas a empresa precisava de recursos de verdade para operar, aí a saída foi descontar os recebimentos futuros das vendas de pacotes. Porém isso fez a dívida aumentar, que somada aos aumentos dos custos de viagem e de juros da economia nacional e mundial para combater a inflação, só fez a bola de neve crescer e ficar fora do controle, resultando na recuperação judicial e prejuízos para todos relacionados com a empresa.


Não classificaria o caso da 123milhas como uma pirâmide, mas talvez uma estratégia "pump and dump", onde se faz crescer a empresa artificialmente para depois vendê-la para outros. O Comitê de Pronunciamento Contábeis e a CVM poderiam aproveitar a oportunidade para rever o CPC 04 (R1), para evitar casos como esse. Assim como o Ministério do Turismo poderia fiscalizar as finanças e práticas contábeis das empresas do setor que atingissem um certo porte ou participação de mercado.


O arquivo em anexo mostra extratos comentados das demonstrações financeiras da 123milhas, que foram retirados do arquivo do processo de recuperação judicial disponível na internet:



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